Diante da crise de criatividade do cinema após 1999, que abraçou com afinco as continuações ("Matrix Reloaded", "Matrix Revolutions"), reboots ("As Pateras", "Rei Leão"), adaptações literárias ("Harry Potter", "Senhor dos Anéis"), filmes de super-heróis (todos os filmes da Marvel Studios) e, atualmente, soft reboots ou sequências legado (retomada de Star Wars em 2015, Star Trek em 2009 e Pânico em 2022), tudo isso em detrimento de obras originais e mais arriscadas, que atingiram o seu ápice na virada do século, "Pecadores" surge como um filme cheio do frescor criativo de um cinema livre, que tem ares de independente, mas com investimento generoso de um filme de estúdio, encontrando o equilibro perfeito entre essas duas forças.
Tentando deixar suas vidas de crimes para trás, os irmão gêmeos Fumaça e Fuligem (Michael B. Jordan) voltam para casa, no Delta do Mississippi, em 1932, com planos de transformar uma antiga serraria em um clube de música voltado para a comunidade negra. Para isso, eles se juntam a Sammy (Miles Caton), um talentoso músico de Blues que tem seus dotes musicais cerceados pelo pai, pastor de uma igreja.
Adotando uma das marcas mais evidentes do cinema contemporâneo — a fusão de gêneros — "Pecadores" entrelaça horror, suspense, western, humor, blaxploitation, filmes de gangster, musical e até a grandiosidade dos épicos americanos à la D. W. Griffith. Da estética do cinema independente, herda o tempero gore, a sensualidade e o desejo — em nítido contraste com o perfil assexuado, conservador e pautado por uma violência sem consequências típico das produções mainstream, como os filmes de heróis da Marvel. Somar essa miscelânea estilística ao contexto racial que atravessa a obra só a engrandece, abrindo espaço para interpretações das mais ricas e instigantes.
Nos primeiros minutos de filmes o diretor estabelece uma mitologia, em que a música é capaz de atrair certa espécie de "espíritos monstruosos". Em dado momento, os monstros da trama parecem similares aos monstros reais do preconceito e da Klu Klux Klan, em nível de ameaça. Todavia, em certa medida, soam até menos piores, dado que o monstro da intolerância encarnado pelo extermínio da negritude acaba por apagar a história e a memória desse povo e tomar para si sua música, embranquecendo-a, ao passo que num clã de vampiros a memória dos sujeitos é conservada, bem como sua cultura, numa relação não escravocrata, dada que não será regida pela da lógica de exploração do regime capitalista - que nasceu e se fortaleceu através da escravidão africana. E essa é a grande potência do filme, fazer parecer que os monstros folclóricos da ficção sejam menos assustadores que os reais.
Muitas vezes algumas histórias reais são melhor retratadas quando alegóricas. Isso coloca um contraste importante desse filme em relação ao pouco assistido "Nickel Boys", que teve alguma visibilidade na temporada de premiações no último ano. Fazer um filme naturalista e direto sobre a experiência do negro nos EUA requer certa dose fantasia para dar conta não só dos fatos que permeiam essa história, mas para retratar a subjetividade destas minorias. Apesar de "Nickel Boys" buscar constantemente essa relação entre o subjetivo e o objetivo, e faz isso dentro de um recorte muito potente, "Pecadores" torna essa experiência atenuada pela catarse do cinema de gênero, e até enriquecida por este, fazendo com que a relação da humanidade com a arte seja um dos temas do filme.
A arte é aquilo que possibilita o ser humano romper as algemas que o prendem no cotidiano. A realidade nunca é o bastante, e isso é intensificado no contexto do filme, de um subemprego numa plantação de algodão em uma época de segregação racial e pela ameaça constante da Klu Klux Klan. A arte possibilita a valorização da subjetividade e o descolamento das limitações impostas pelo cotidiano, fazendo que a humanidade vá ao encontro de si mesma, ou de algo que transcende a própria existência, e o filme reconhece isso numa cena espetacular, em que a subjetividade coletiva é encenada sem as amarras de tempo e espaço.
Com um elenco coeso, o diretor Ryan Coogler consegue surpreender na maneira como trabalha suas personagens. Se por um lado pensamos ser os gêmeos, interpretados por Michael B. Jordan, os protagonistas, aos poucos fica claro que esse protagonismo é compartilhado com uma gama de personagens igualmente distintos e que carregam as mais diversas subtramas, enriquecendo muito a paleta construída pela trama. E é muito gratificante perceber como Coogler consegue amarrar diversos elementos presentes em filmes como "Prova Final", "Um Drink no Inferno", "O Enigma de Outro Mundo" e "Os Garotos Perdidos" - inclusive um recurso presente neste último filme, presente na sua resolução, é muito bem explorado pelo diretor para criar um senso de claustrofobia e isolamento, típico das histórias de Stephen King, que serve de base também para "Pecadores".
Assim, "Pecadores" é uma tentativa muito bem sucedida de quebrar a falta de criatividade e ousadia do cinemão de Hollywood, harmonizando diversas inspirações e filmes diferentes em uma narrativa orgânica, centrada na experiência dos negros nos EUA em uma época de segregação racial e a sua relação com a própria subjetividade através da expressão artística do Blues. E, como consequência disso, o filme acaba discorrendo sobre a importância arte nos dias de hoje.
Direção: Ryan Coogler
Roteiro: Ryan Coogler
Montagem: Michael P. Shawver
Fotografia: Autumn Durald Arkapaw
Trilha Sonora: Ludwig Göransson
Elenco: Michael B. Jordan, Miles Caton, Hailee Steinfeld, Wunmi Mosaku, Jack O'Connell, Delroy Lindo, Omar Benson Miller, Jayme Lawson, Li Jun Li, Yao, Lola Kirke, Peter Dreimanis, Buddy Guy, Saul Williams, Andrene Ward-Hammond, Tenaj L. Jackson, David Maldonado, Aadyn Encalarde, Helena Hu, Sam Malone, Ja'Quan Monroe-Henderson, Percy Bell, Emonie Ellison, Kai Thompson, Nathaniel Arcand, Mark L. Patrick, Gralen Bryant Banks, Nicoye Banks, Christian Robinson
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