Na abertura de “Os Sapatinhos Vermelhos” vemos um livro escrito por Hans Christian Andersen que serve de base para uma vela. O conto que dá nome ao filme será, então, a luz que irá nos guiar nessa narrativa metalinguística de traços sombrios e psicanalíticos que envolve jogos de poder e ego entre artistas.
Vicky Page é uma ambiciosa bailarina que é aceita no Ballet Lermontov, juntamente com Julian Craster, um jovem compositor, com o qual passa a viver um romance e deve escolher entre a careira e o relacionamento.
Quando Hans Christian Andersen adaptou a fábula conhecida como "As sapatilhas do Diabo", "Os sapatos ardentes do Diabo" ou, como ele chamou, "Os Sapatinhos Vermelhos", o fez com algumas adaptações. Em linhas gerais contava a história de uma vaidosa menina que adquire um par de sapatos vermelhos reluzentes que tem vontade própria e, uma vez calçados, nunca param de dançar. Ela não consegue se ver livre deles nem cortando as alças, então implora a um lenhador que lhe ampute os pés. Este o faz, conferindo-lhe pés de madeira. Ela pede perdão a Deus e é alçada aos céus. Todavia a versão germânica usada pela psicanalista norte-americana Clarissa Pinkola Estés no célebre livro “Mulheres Que Correm Com Os Lobos” acrescenta o fato de que a menina, após ter os pés amputados, “(…) era, agora, uma pobre aleijada e teve de descobrir um jeito de sobreviver no mundo trabalhando como criada. E nunca mais ansiou por sapatos vermelhos.” Clarissa ressalta que a menina tinha um par de sapatos vermelhos que ela mesma fez quando órfã. Foi-lhe feita a oferta de morar com uma senhora rica, que jogara fora os sapatos manufaturados. A menina então pede de presente o par de sapatos reluzentes de fabricação industrial, posteriormente encantados para dançar sem parar. Segundo Clarissa “(…) a perda dos sapatos vermelhos feitos à mão representa a perda da vitalidade passional e da vida que a própria mulher projetou para si, aliadas à adoção de uma vida domesticada em excesso. Isso acaba levando à perda da percepção aguçada, que induz aos excessos, à perda do pé, a plataforma sobre a qual pousamos, nossa base, um aspecto profundo da nossa natureza instintual que sustenta a nossa liberdade.” Clarissa usa uma versão mais rica de símbolos dessa fábula que ouvia de sua tia e que não possui o moralismo cristão de Andersen, e com ela em mente é possível fazer uma leitura mais rica do filme.
“Os Sapatinhos Vermelhos” foi realizado pela dupla de diretores e roteiristas Michael Powell e Emeric Pressburger, que dirigiram uma série de filmes célebres, como “Narciso Negro” e “Coronel Blimp – Vida e Morte”. A dupla atuou na década de 1940 e 1950, sob a alcunha de “Arqueiros”, num dos momentos de maior grandeza do cinema britânico.
O longa nos apresenta nos primeiros minutos o reluzente e majestoso Ballet Lermontov, juntamente com a figura de Julian, um compositor de talento que descobre no decorrer do espetáculo que fora plagiado pelo seu professor. Boris Lermontov é visto como a figura enigmática e de poder, apresentado pertinentemente atrás das cortinas, como um indivíduo que respira arte e trata os seus artistas com o mesmo cuidado que um mestre de fantoches, oferecendo-lhes o que há de melhor e demonstrando um carinho contido e pouco caloroso, mas que exige dedicação completa, personificando uma espécie de demônio para quem as musas vendem a sua alma em troca do brilho do palco. À elas não é permitido opinar, questionar ou fugir das regras, apenas dançar. É nesse contexto que Vick é apresentada, uma jovem aspirante à bailarina que demonstra a mesma obsessão que Boris, comparando o próprio ato de dançar ao ato de viver. A excelência artística que beira à obsessão pode ser sentida também em Julian, quando este já demostra ter escrito toda uma nova versão para o Ballet “Os Sapatinhos Vermelhos” mesmo que Lermontov só tenha lhe pedido para reescrever algumas partes. Nesse sentido, é interessante notar que a única pista que temos de que a relação conflituosa entre Vick e Julian mudara é quando este, que criticava a lentidão da bailarina em seguir o ritmo da sua composição, sinaliza antes da apresentação que ela pode dançar no seu próprio ritmo e que ele a seguirá na condução da orquestra, ou seja, tudo sinalizado ao espectador através da arte.
Na espetacular sequência de Ballet que dura em torno de 15 minutos temos um prenúncio dos caminhos que a historia irá tomar e o lado metalinguístico se sobressai, Vick personifica essa menina que deseja os sapatinhos encantados que fazem a personagem dançar até a morte. Num momento temos a visão de Boris e Julian no lugar do sapateiro que encanta os cobiçados sapatos, num contraste claro entre lei e desejo. Num show de cores e de efeitos visuais que remetem diretamente ao imaginário dos contos, é de se aplaudir a decisão da dupla Powell e Pressburger de narrar aquela história fora da lógica naturalista de filmar o palco, mas de investir na mudança de cenários, em closes, movimentos de câmera, jogo de luz e sombra, efeitos visuais e uso de cores que ressaltam o vermelho e o amarelo, posicionando o longa com um dos melhores usos de Technicolor. A partir dali um romance se desenvolve entre Julian e Vick, sem que Boris tenha percebido, e longe dos olhos dos espectadores também. A natureza obsessiva de Boris se sobressai de uma maneira muito complexa. Como um indivíduo reservado e pouco caloroso, seu ciúme de Vick passa longe de algo sexual, mas se assemelha à relação entre Mefistoféles e Dr. Fausto, como se Boris tivesse a capacidade de capturar a alma de Vick através dança, como um Deus que vê de cima seus adoradores lhe prestarem uma oferenda. Se esse ato não for de dedicação exclusiva, de atenção plena, esse Deus não reconhece o ato, esse demônio irá negar os favores concedidos. Boris é o mágico que encanta os sapatos com o seu poder de materializar os sonhos através do espetáculo.
É interessante notar que Vick sempre é vista com os seus vestidos dos mais variados tons de azul, passando a ideia de estar incompleta fora dos palcos. Nos espetáculos de Ballet seu vestido é branco. Em seu momento mais forte, quando resolve sair da companhia de dança após Boris ter demitido Julian, ela usa uma roupa azul escura com listras brancas, passando a ideia que a dança fez dela completa e ela é capaz de tomar as próprias decisões e decidir sobre com quem se relaciona ou mesmo se irá ou não se relacionar com alguém. Todavia, conforme fora prenunciado na encenação do Ballet, Boris tem a chance de lhe oferecer o par de sapatos vermelhos quando, no trem, lhe oferece o papel novamente. Como numa metáfora sobre a normalização de hábitos que nos destroem, seja no ambiente de trabalho ou na vida pessoal, se não formos capazes de optar por um ambiente de equilíbrio entre aquilo que devemos fazer e o que queremos fazer, estaremos fadados a dançar eternamente a dança dos outros, sob a batuta dos outros, até a morte, pagando com a nossa própria sanidade e corpo.
Os Sapatinhos Vermelhos - The Red Shoes- Inglaterra, 1948
Direção: Michael Powell e Emeric Pressburger
Roteiro: Michael Powell, Emeric Pressburger e Keith Winter (diálogos adicionais), baseado num conto de Hans Christian Andersen
Elenco: Moira Shearer, Marius Goring, Anton Walbrook, Ludmilla Tchérina, Léonide Massine, Austin Trevor, Irene Browne, Esmond Knight, Robert Helpmann
Música: Brian Easdale
Fotografia: Jack Cardiff
Montagem: Reginald Mills
Design de produção: Hein Heckroth
Direção de Arte: Arthur Lawson
Figurino: Hein Heckroth
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