Ao longo dos anos, o cinema de super-heróis tem apostado em uma paleta cada vez mais dessaturada, escura e lavada. Até mesmo os filmes da Marvel adotaram um visual desbotado, guiado por um realismo fotográfico que tenta aproximar esses personagens de um mundo que se pareça com o nosso. James Gunn já apontava para outra direção em sua trilogia "Guardiões da Galáxia", mas é em "Superman" que ele abraça de vez o lúdico sem pudor: dirige um filme solar, colorido, fantasioso e vibrante, exatamente como o espetador desgostoso do Superman sombrio de Zack Snyder ou do Homem-Aranha desbotado de Jon Watts sempre sonhou. Ao dar vazão ao encantamento dos quadrinhos, Gunn não só prepara uma nova geração para o novo universo da DC, como também faz aquele adulto que comprava gibis do Flash, do Superboy ou do próprio Superman na banca de jornal lembrar o quanto era gostosa aquela infância.
No novo Superman de James Gunn, um detalhe chama atenção: a presença do Clarim Diário, jornal impresso lido por personagens como Mulher-Gavião, que parece resistir à completa digitalização do mundo. Esse anacronismo — quase utópico — reforça o romantismo de um herói que carrega valores clássicos em um cenário onde o tempo já passou por cima de muita coisa. O papel impresso, como o próprio Superman, parece vir de outro tempo.
No entanto, essa nostalgia não impede o filme de dialogar com os impasses contemporâneos. A narrativa política que permeia o enredo — com referências evidentes ao genocídio em curso na Faixa de Gaza — insere o longa nas discussões urgentes do presente. A ideia de que uma potência pode justificar a dominação de outra nação sob o pretexto de libertá-la de um tirano ecoa o discurso utilizado pelos EUA na invasão do Iraque. Gunn não apenas reconhece essas tensões, como as integra ao drama dos personagens, atualizando o mito do herói sem enfraquecê-lo.
Essa tensão entre o romantismo de um herói clássico e o cinismo geopolítico de uma sociedade movida por interesses escusos funciona como sístole e diástole de um coração que bombeia sangue novo para o esgotado gênero de super-heróis. Gunn entende que o heroísmo hoje só é possível se for inteligente, irônico, autoconsciente — mas ainda assim, genuíno. E é justamente na interseção entre conflito e humor, esperança e desilusão, que o filme encontra sua força, sustentado tanto pela inteligência das personagens quanto pelo carisma de seus intérpretes.
Gunn acerta em outro aspecto vital do filme: a dificuldade de escrever e encenar uma história com o Superman. Trata-se de um personagem tão poderoso que, muitas vezes, inviabiliza qualquer narrativa que não envolva Kriptonita. Todavia, o diretor aposta na construção de um universo rico em personagens variados — meta-humanos de diferentes naturezas — para criar uma fragilidade significativa ao protagonista. Essa vulnerabilidade se soma ao subtexto do herói como um imigrante planetário, trazendo à tona implicações políticas que envolvem xenofobia e pertencimento.
Parece ser uma tendência recente nos filmes de super-herói, como resposta à crise criativa do gênero, a aproximação com conflitos mais humanos e existenciais, em detrimento de cenas puramente espetaculares de ação. Muitos filmes de herói, inclusive, tem preferido concluir com um anticlímax que não celebra as ações heroicas, mas que põe em perspectiva, de maneira bem intimista, o sujeito. "The Flash" já apontava nessa direção, assim como o Batman de Matt Reeves e até mesmo "Homem-Aranha: Através do Aranhaverso". Com "Superman" não é diferente: apesar de contar com grandes momentos de catarse e embates físicos, o que realmente se destaca é o cuidado com o conflito de identidade e existência — fundamental para gerar proximidade com o personagem.
Essa preocupação fica evidente em suas cenas de voo. A graciosidade de ver um homem voar, marca registrada do filme original dirigido por Richard Donner em 1978, e a explosão visual do “homem-foguete” encenada por Zack Snyder em sua versão do herói, dão lugar aqui a uma câmera impressionista, que fecha no protagonista e distorce o entorno. O resultado é uma experiência subjetiva e imersiva, que nos convida a sentir o voo não como espetáculo, mas como sensação.
Por fim, "Superman" marca não apenas o interesse de James Gunn em sua nova fase como diretor e coordenador do universo da DC, mas também — e mais importante — sua evidente aptidão para o desafio. Em meio a uma indústria que teme correr riscos e frequentemente poda a criatividade de seus artistas, Gunn — assim como sua interpretação do "Superman" — surge como uma grata surpresa. Seu filme é uma demonstração poderosa das potencialidades ainda não realizadas do gênero de super-heróis, provando que ainda há espaço para emoção, crítica e imaginação no cinema pop contemporâneo.
Direção: James Gunn
Roteiro: James Gunn
Montagem: William Hoy, Craig Alpert
Fotografia: Henry Braham
Trilha Sonora: John Murphy, David Fleming
Elenco: David Corenswet, Rachel Brosnahan, Nicholas Hoult, Edi Gathegi, Anthony Carrigan, Nathan Fillion, Isabela Merced, María Gabriela de Faría, Skyler Gisondo, Sara Sampaio, Mikaela Hoover, Zlatko Burić, Pruitt Taylor Vince, Neva Howell, Wendell Pierce, Christopher McDonald, Alan Tudyk, Beck Bennett, Bradley Cooper, Angela Sarafyan, Pom Klementieff, Michael Rooker, Grace Chan, Tatiana Piper, Stephen Blackehart, Giovannie Cruz, Bonnie Discepolo, Terence Rosemore, Natasha Halevi
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