Quem se aventura a assistir as obras de arte que David Lynch dirige sabe que elas transcendem o próprio conceito de cinema enquanto linguagem, quebrando todos os paradigmas convencionais de um roteiro autoexplicativo e criando filmes tomados por uma série de incógnitas sem soar, por incrível que pareça, aleatório. Muito pelo contrário, é dessa forma que Lynch faz surgir em nós sensações das mais viscerais, desde a melancolia, a dor profunda e o horror. Podemos não entender o que se passa em tela racionalmente, mas nossas sensações não saem incólumes à experiência. É sob esse prisma que a terceira temporada de “Twin Peaks” se converte na experiência mais marcante do ano de 2017, cabendo aqui discutir sobre a mudança de paradigma que a televisão pode estar vivendo, se convertendo numa experiência por vezes mais criativa, ousada e gratificante do que o cinema mainstream, tomado pelas amarras de um formato feito para lucrar milhões em um único Blockbuster sem poder ousar.
Originalmente nos anos 1990 a série explorava o assassinato de Laura Palmer, uma popular estudante de uma cidade ficcional do interior de Washington. Sua narrativa ia de uma tradicional novela policial com personagens excêntricos e fortes influências de surrealismo vindas do diretor David Lynch, no auge de sua carreira no cinema, sendo premiado pela Palma de Ouro em Cannes por "Coração Selvagem" ainda enquanto a série era exibida. A influência da série original nas produções para a TV é sempre citada, numa época em que era novidade ter um diretor consagrada trabalhando numa série, algo que hoje em dia já é mais comum, devido à própria influência de Twin Peaks.
Pois nessa onda de revivals e refilmagens, que no cinema vão desde “Star Wars”, “Jumandi”, “Jurrasic Park/Word”, e na TV passa por “Gilmore Girls” e “Arquivo X”, é em “Twin Peaks” que vemos que simplesmente não basta recriar pura e simplesmente as convenções estabelecidas no material original. É preciso dar um passo a frente e fazer sentir a passagem de tempo. O expectador já não é mais o mesmo, logo os personagens também não. E é nessa expectativa de voltar a ver esses personagens em sua forma mais conhecida e consagrada 25 anos depois do término da conturbada segunda temporada que Mark Frost e David Lynch brincam com a identidade do protagonista, o agente Cooper, expandem o universo criado na série original com uma série de metáforas que falam sobre o nosso mundo mesquinho, superficial e que tem dificuldade de entender o outro.
É latente a constatação de um EUA doente depois de uma crise econômica e da eleição de Trump. O desencanto com as autoridades se faz sentir no decorrer da trama e as críticas às condições sociais soam muito fortes. Os questionamentos são criados e poucos são respondidos de maneira tradicional, abrindo espaço para múltiplas interpretações, algo recorrente nos trabalhos de Lynch. A série atinge a excelência em narrativa e fotografia, criação de clima e direção acima da média e um design de som primoroso assinado pelo próprio diretor, que também atua. Se é para destacar algum episódio em especial, o terceiro é um show a parte de ambientação e questionamentos, mas é no episódio oito que Lynch se reinventa num trabalho audiovisual e fortalece a mitologia da série, numa das experiências mais intensas e envolventes que uma série de televisão poderia proporcionar.
Os shows que fecham alguns dos episódios são catárticos e as citações constantes ao filme “Twin Peaks: Os Últimos Dias de Laura Palmer” tornam o longa praticamente obrigatório para uma experiência plena. Pois nesse conto de fadas macabro a sensação que fica no final é a da tragédia de um homem que se descobre muitos e ao encontrar a sua verdadeira identidade percebe que luta contra algo muito maior que si, talvez um poder destrutivo presente dentro de todos nós que nos impõe um caminho trágico, mas que não impede que nossa vida valha a pena ao tentar mudar nosso destino e transformar a nossa existência.
Trailers da temporada 3
Trailer do filme “Twin Peaks: Os Últimos Dias de Laura Palmer”, dirigido pelo próprio Lynch.
Mini documentário feito pela Showtime em três partes para mostrar a influência da série em outros realizadores e a base de fãs da série.
Twin Peaks – The Return (Temporada 3)
Direção: David Lynch
Roteiro: Mark Frost, David Lynch
Elenco: Kyle MacLachlan, Jay Aaseng, Joe Adler, Mädchen Amick, Dana Ashbrook, Owain Rhys Davies, Eamon Farren, Sherilyn Fenn, Jay R. Ferguson, Patrick Fischler, Robert Forster, Nathan Frizzell, Harry Goaz, Michael Horse, Caleb Landry Jones, Jennifer Jason Leigh, Peggy Lipton, James Marshall, Everett McGill, Clark Middleton, John Pirruccello, Kimmy Robertson, Wendy Robie, Tim Roth, Rodney Rowland, Harry Dean Stanton, J.R. Starr, Naomi Watts, Nae
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